Ídolo. Vocábulo definidor de uma adoração. Religiosa. Artística. Familiar. Todos temos algum. Algo ou alguém que gostaríamos de replicar. Algo ou alguém que pela sua influência ou capacidade, é sempre o primeiro a ser referido quando o assunto assim o exige. A maior virtude de um ídolo é o facto de ser transversal. É que este também tem os seus. Atravessa classes. Géneros. Povos. Em carne e osso ou imaginários. Ídolos. Todos temos algum.
Gosto de música brasileira.
Admito. Não tenho como fugir. É a verdade. Ouço outras sonoridades e sou fã
incondicional de artistas ou bandas que fogem por completo ao estilo. Mas a MPB,
a bossa nova, o samba e todo o tropicalismo são parte integrante da minha vida.
Do meu dia-a-dia. Do meu bem-estar. Da minha boa disposição. E para tudo isso
muito contribui o génio de Chico Buarque.
Chico (tratá-lo-ei desta forma,
já que o considero um amigo, apesar de não o conhecer), amante absoluto do
jogo, não foge à regra. É ídolo. Mas também tem os seus. Desde pequeno que
acompanhou o esporte bretão bem de perto.
Passava tardes no Pacaembu, recinto mais próximo da sua casa, a ver futebol. Ainda
menino, esperava toda uma primeira parte do lado de fora do estádio, até à
abertura dos portões no intervalo, de forma a poder assistir a uma partida do
seu jogo predilecto. Tricolor fluminense do coração, não tem qualquer problema
em admitir que o verdadeiro prazer, que o verdadeiro fascínio, estava
representado no Santos. Sim, aquele Santos. O famoso. O temível. A verdadeira
concepção do futebol espectáculo. Bicampeão do Mundo. Bicampeão sul-americano. Pentacampeão brasileiro. Octacampeão paulista. Um conjunto eterno. Inigualável.
Aquele Santos. De Gilmar. De Zito. De Pepe. De Dorval. Aquele Santos. De
Mengálvio. De Toninho Guerreiro. De Coutinho. De Pelé. Aquele Santos. Que parou
guerras no Congo e na Nigéria. “O maior time da Terra”. Mas antes, mais
concretamente no ano de 1955, chegava ao clube o ídolo de um ídolo. O elemento
municiador de todo um ataque implacável. O seu nome? Paulo César Araújo. Para o
mundo do futebol? Pagão. Muito prazer.
“Ele era demais em campo. Era um
jogador de uma leveza admirável. Adorava quando ele pegava a bola no ar e, com
a parte de fora do pé, vindo de trás, chapelava o seu adversário”.
Chico
nutre uma paixão inabalável pelo jogo. Essa fica demonstrada de forma
inequívoca no seu DVD “O Futebol”, onde através de encontros com alguns craques
no recinto da sua equipa amadora (o Politheama), a visualização de jogadas
famosas dos mais brilhantes futebolistas brasileiros e com um discurso
intimista, convida-nos a uma viagem no tempo. A um déjà vu arrebatador. A um
futebol quase desaparecido. Romântico. Sem luxos. Sem classes. Mas com ídolos.
Pagão é o seu. A citação pertence-lhe e refere-se evidentemente ao craque da
camisola 9 santista.
Era elegante. Esguio. Rápido.
Leve. Habilidoso. Plástico. De remate violento. Um génio. Marcava como poucos,
mas acima de tudo criava como ninguém. Jogava com a camisola 9, mas a alma era
a de um 10. Organizador. Armador. A muleta de um ataque imparável. Marcá-lo? Quase
impossível. Recuava no campo para construir e com essa mobilidade fazia a
diferença, numa altura em que o jogo se regia por sistemas demasiado estáticos
e previsíveis. “Mata no peito, baixa na terra”. Um clone de Di Stéfano nos
relvados da América do Sul.
“Eu
sempre jogo com a camisa 9, que era do Pagão. E toda a vez, assino a súmula do
jogo com o nome de Pagão.”
É desta forma que Chico Buarque
homenageia o seu ídolo, e revela a sua admiração e paixão pelo atacante
santista. Contudo, o primeiro contacto entre ambos aconteceu apenas em 1984, no
Estádio Vinicius de Moraes, o campo dos seus jogos amadores com a camisola do
Politheama. Um nervoso miudinho apoderou-se do artista. “Fiquei que nem um garoto”,
nas palavras do próprio. “Fui jogador por acaso. Fui empurrado. Foi o destino”,
disse Pagão em conversa com Chico Buarque, que aparentava estar ainda um pouco
intimidado com a presença do seu ídolo. Quem diria. Chico constrangido.
Na
música idem. Com a poesia de Vinicius. Com as composições magníficas dos
mestres Tom e Gilberto. Com o som made in Verve Records de Stan Getz e o seu
saxofone. Com o tropicalismo de Caetano e Gilberto Gil. Com o samba triste de
Cartola. Com o choro e o samba-canção de Elizeth Cardoso. Com o sambalanço de
Jorge Ben. Com a voz maravilhosa de Elis Regina. Com o samba puro de Zeca e
Martinho. Com a alegria de Simonal. Com o toque paulista e pacífico de Adoniran
Barbosa. Mas, acima de tudo, com Chico. Sempre Chico. Quando anos mais tarde o
conhecimento acerca do músico foi aprofundado e me deparei com frases como as
seguintes, não tive dúvidas. Tornei-me fã incondicional. E hoje em dia, Chico é
o mais perto de um ídolo que eu consigo imaginar, dentro do panorama musical.
Muito por culpa do futebol, já que a sua visão do jogo é pura. É a de recreio.
É a de jogar pelo prazer. Do divertimento. Da meninice. Da arrogância do um
para um. No fundo, era desta forma que Pagão era visto por ele. Pagão, o seu
ídolo. O ídolo de um ídolo.
“O que
conta mesmo é a bola e o moleque, o moleque e a bola, e por bola pode-se
entender um coco, uma laranja ou um ovo, pois já vi fazerem embaixada com ovo.
Se a bola de futebol pode ser considerada a sublimação do coco, ou a
reabilitação do ovo, o campo oficial às vezes não passa de um retângulo chato.
Por isso mesmo, nas horas de folga, nossos profissionais correm atrás dos
rachas e do futevôlei, como Garrincha largava as chuteiras no Maracanâ para bater
bola em Pau Grande. É a bola e o moleque, o moleque e a bola.” – Chico Buarque,
no livro Futebol-Arte, A cultura e o jeito brasileiro de jogar (Editora Senac,
1998).
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