Oviedo, 1982
Quinta-feira.
Pouco passava da uma da tarde. Acabado de chegar da escola, sentei-me em frente à
televisão. Não tinha fome. Apenas ânsia. Não. Não ansiava pelos desenhos
animados nem por alguma série juvenil. Não. Não ansiava pelo começo do boletim
informativo. Não. Não ansiava pelo E.T., pelo Blade Runner, pelo terceiro
capítulo da saga Rocky ou pela segunda aventura da tripulação da USS Entreprise
em Star Trek. Não. Naquela tarde de quinta-feira a ânsia era diferente. Ansiava
por futebol.
Estávamos no pico do Inverno em
Santiago. Em Oviedo também choveu durante a manhã de quinta-feira. Contudo, as
imagens que chegavam de Espanha traziam-nos uma temperatura diferente. De
festa. De emoção. De alegria. De futebol. Era dia de jogo. Dia da estreia. Depois
de uma qualificação in extremis, a
esperança era abundante. Os olhos de um país estavam naqueles onze jogadores.
Em Eduardo Bonvallet, El Guru. Em Pato Yáñez. Na referência ofensiva
Carlos Caszely, figura de proa da sociedade chilena ainda hoje, pelas suas
posições políticas e sociais. Eu, porém, estava de olhos postos numa zona mais
recuada do terreno. Estava de olhos postos no meu avô.
Mas
afinal quem é o meu avô? Boa pergunta. Existe tanto para dizer que nem sei bem
por onde começar. Talvez pelo princípio. O meu avô foi um dos melhores
jogadores sul-americanos de sempre. Juro. Foi posto à prova bem cedo. Problemas
respiratórios primeiro. Asma. Questões mais graves depois. Aprendeu a andar
duas vezes. Talvez por isso, fê-lo de forma graciosa. Era elegante. Com quinze
anos enfrentou Pelé e Garrincha, numa partida amigável pré-Mundial de 1962.
Destacou-se. Deixou a dúvida no ar. Quem é este menino tão sóbrio, tão seguro
de si, tão destemido e tão ciente das suas capacidades? Com dezassete foi
apelidado de Don por um radialista
(Hernán Solís) que acompanhou o confronto que opôs o Santiago Wanderes e o Colo
Colo em pleno Estádio Nacional. “Estamos
frente a un muchacho de 17 años que juega como un crack maduro. Desde hoy, yo
no puedo más que llamarlo Don, Don Elías Figueroa”. Sim, eu sou o neto de
El Impasable. Eu sou o neto de El Gran Capitán. Eu sou neto de Elías Figueroa.
"El
área és mi casa y en mi casa sólo entra quien envito"
A
minha mãe passeava pela sala, perguntando insistentemente se eu não tinha fome.
Era a sua forma de reagir face ao nervosismo pré-jogo. Não queria dar parte
fraca, mas era impossível não reparar nas miradas que ela dava de soslaio para
a televisão. Já o meu pai, folheava o jornal. Jornal esse que já tinha sido
lido pela manhã. Sim, o meu pai estava com o jornal aberto e fingia ler as
notícias, mas a sua atenção, essa, estava na televisão também. Cada um à sua
maneira espera ansiosamente pelo apito inicial. O momento em que o meu avô
faria história. O momento em que eu também faria parte dessa mesma história. Da
história do jogo. Da história dos Mundiais de Futebol.
O meu avô subiu ao relvado.
Atrás dele, os dez companheiros de equipa selecionados pelo treinador Luis
Santibañez. Nenhum deles tinha, contudo, o estatuto, a fama, a grandeza de
Elias Figueroa. Não nos podemos esquecer de que estamos a falar de alguém que
foi eleito o melhor jogador do continente durante três anos consecutivos, em
1974, 75 e 76, prémio atribuído pela publicação El Mundo da Venezuela até 1985,
e pelo El País uruguaio até hoje. O sucessor? Zico. O antecessor? Pelé. Esse
mesmo. O meu avô sucedeu ao Rei do Futebol.
Uma
lenda que começou a ganhar forma em Inglaterra. Decorria o ano de 1966 e um
jovem Elias Figueroa, com dezanove anos de idade, deixou a sua marca no Mundial
de Inglaterra, naquela que foi a sua primeira aparição em grandes competições
internacionais. A “Muralha Vermelha” como foi apelidado, foi considerado o
melhor jogador chileno da prova. A
presença no certame inglês ditou a primeira grande mudança da carreira. Os
olheiros do Peñarol, um colosso sul-americano à época, ficaram encantados com a
prestação do meu avô. O futuro de Don
Elías porém, esteve prestes a passar pelo país vizinho, a Argentina, e pela
camisola do Independiente de Avellaneda. Já com os exames médicos feitos com os
Diablos Rojos, o então
vice-presidente do Peñarol, Washington Cataldi, reservou um avião com destino a
Montevideu. Assinou. A primeira experiência relevante a nível de clubes, fora
do território chileno, estava prestes a começar. Iria revelar-se um sucesso.
Na
capital uruguaia foi rei e senhor. Melhor jogador do campeonato por duas vezes,
sagrou-se bicampeão da liga local (a primeira das quais de forma invicta) e
disputou a final da Copa dos Libertadores frente ao Estudiantes de Osvaldo
Zubeldía no banco e de Carlos Bilardo e de Juan Ramón Verón (La Bruja, pai de Juan Sebastián Verón,
actual presidente do clube) em campo, formação que venceu a prova por três
vezes consecutivas, entre 1968 e 1970, com uma conquista intercontinental pelo
meio, em Old Trafford. Mesmo com a companhia de grandes nomes do futebol uruguaio
e não só, como Ladislao Mazurkiewicz, o equatoriano Alberto Spencer ou o
fabuloso Pedro Rocha, El Verdugo, melhor
jogador da Copa América de 1967, sete vezes campeão nacional e três vezes
vencedor da Copa Libertadores ao serviço do clube charrúa (e que passou inclusivamente pelo Sporting de Portugal,
como treinador, no final da década de 80), o meu avô foi capaz de impor a sua
presença. A sua liderança. A sua classe. Aliás, essa foi uma das
características mais relevantes da sua extensa carreira como futebolista: foi
capitão de equipa em todos os clubes que representou!
O golo iluminado
“A
maior contratação do Inter em todos os tempos”
Foi
desta forma que Eraldo Hermann, presidente do Internacional de Porto Alegre,
apresentou Elías Figueroa aos sócios, simpatizantes e jornalistas presentes no
Beira-Rio. Depois de quatro temporadas de grande nível no futebol uruguaio, o
meu avô decidiu mudar de ares. Mas não sem antes trazer mais algum misticismo à
sua pessoa. Quem é que, no seu perfeito juízo, recusa uma proposta do Real
Madrid? Poucos. Um deles? El Coloso Figueroa.
A justificação foi simples e fez
todo o sentido. O campeonato brasileiro, que foi sempre olhado com desdém pelo
mundo do futebol, principalmente o europeu, estava recheado de estrelas.
Emergentes ou pujantes. À procura do seu espaço ou heróis de milhões. A
conquista de 1970, no México, estava ainda bem fresca na memória de todos e o
futebol-arte, o futebol-samba, sem espartilhos tácticos e com espaço para os
mais dotados explanarem todas as suas virtudes técnicas e, acima de tudo,
divertirem um público sedento de futebol bonito, tinha no Brasil o seu palco
primordial. Figueroa queria desafios a sério. Queria defrontar os melhores
todas as semanas. Perante tal obstinação, a escolha foi óbvia. Recusados os Blancos, aterrou em Porto Alegre e
tornou-se um símbolo. Um defensor que rivalizava com Pelé em termos de atenção
mediática, algo impensável antes da sua chegada. Mesmo envergando a camisola de
um clube que nunca tinha conseguido atingir o clímax competitivo e vencer o
campeonato do país do samba. Mas com o meu avô, tudo mudou.
Fez parte de uma das melhores
formações de sempre do clube. Com Manga na baliza, com o fabuloso Paulo Roberto
Falcão no centro do terreno, e com a companhia de Carpegiani e Valdomiro, todos
autênticas lendas do clube, conquistou seis títulos de campeão gaúcho, foi bicampeão
brasileiro, e apenas foi derrotado por uma vez no Grenal (o Clássico de Porto Alegre, que opõe o Grémio ao
Internacional) nas dezassete ocasiões em que o disputou. Era demasiado forte
mentalmente. Carácter. Liderança. Sentido táctico. Inteligência. Era demasiado
forte tecnicamente. Segurança na saída de bola. Elegante na condução.
Intratável no jogo aéreo. Refinado tecnicamente. Era tudo o que um treinador
podia desejar. Quando questionado sobre quais os atributos principais para ser perfeito
na sua posição, respondeu de forma curta, clara e concisa: “Tiempo y distancia, éstas son las características para ser un buen
defensor".
Porto Alegre. 14 de Dezembro de
1975. Internacional vs Cruzeiro. Em jogo? O título de campeão brasileiro, o
primeiro do Gigante da Beira-Rio. Este foi, muito provavelmente, o momento
definidor da sua passagem pelo futebol brasileiro, e, desde logo, da sua
carreira. Dia de céu nublado e tensão. Um daqueles dias em que as equipas
precisam dos melhores. Um daqueles dias em que as lendas são forjadas. Um
daqueles dias em que um simples gesto pode ser banhado a ouro. No caso do meu
avô foi um cabeceamento. No caso do meu avô foi um golo. No caso do meu avô foi
o ponto mais alto da história de um clube. O golo iluminado.
Decorria o minuto onze da
segunda parte. Uma falta no lado direito do ataque da equipa da casa deu lugar
a um livre na zona lateral da grande área adversária. A torcida estava animada.
“Colorado! Colorado!” gritavam em uníssono, puxando pelos seus pupilos e
antevendo uma situação de perigo. Valdomiro pegou na bola, assumindo a
marcação. Aguardou alguns segundos, enquanto Figueroa subia no terreno. Dois
passos atrás. Pé direito na bola. Lançamento em arco, como que a fugir do raio
de acção do guardião contrário. Por essa altura, já era possível prever que
algo maravilhoso iria acontecer. Por entre o cinzentismo do céu, um raio de luz
inesperado atravessou o relvado e brilhou na zona da grande área. Na zona de
Figueroa. Na zona onde o meu avô se elevou e desferiu um cabeceamento potente,
que fez o esférico balançar a rede e levar à loucura os muitos milhares de
adeptos que enchiam um Beira-Rio a rebentar pelas costuras. O único golo do
jogo. O jogo do título. O jogo que fez de Don Elías Figueroa uma figura
lendária do futebol de Porto Alegre, brasileiro e mundial. Sinal divino? Acaso
meteorológico? Não. O golo iluminado.
No ano seguinte, novo título. Ofereceram-lhe a nacionalidade brasileira e um cheque em branco. Recusou. “Soy chileno. El dinero no compra la nacionalidad”. Em 1977, rumou a casa. Aceitou uma proposta do Palestino, uma formação fundada por emigrantes árabes da região, mas um conjunto inexpressivo no panorama futebolístico chileno. Conquistou a Taça do Chile. No ano seguinte venceu o campeonato chileno pela primeira vez na sua carreira. Os Tricolores juntaram ao título um recorde de invencibilidade de 44 jogos, um feito que perdura até aos dias de hoje. Com Figueroa na liderança, pois claro. Após três anos ao serviço dos Árabes, rumou aos Estados Unidos, aliciado pela promessa de uma reforma dourada e assinou por uma temporada com o Fort Lauderdale Strikers, onde foi companheiro de equipa de Teófilo Cubillas e Gerd Muller. A sua carreira caminhava para o final. Regressou ao Chile e vestiu a camisola do Colo-Colo durante três meses, mas no dia 1 de Janeiro de 1983 decidiu deixar de fazer o que mais gostava. O corpo já não correspondia como antigamente, e Don Elías sentia que nem com toda a experiência acumulada poderia ser um elemento útil na equipa. Aquele Colo-Colo vs U.Chile, que terminou empatado a duas bolas, foi o canto de cisne de uma carreira inolvidável, daquele que foi, por mérito próprio, o melhor defesa que o futebol sul-americano teve o prazer de conhecer.
No Estádio Carlos Tartiere, de Oviedo, o jogo
não correu da melhor forma. A grande penalidade conquistada e desperdiçada por
Carlos Caszely mexeu animicamente com a selecção chilena e motivou os
austríacos. Estava dado o mote para um Mundial para esquecer. Três derrotas em
três jogos, num grupo marcado pelo vergonhoso pacto de não-agressão de Gijón,
entre a Alemanha e a Áustria, ditaram o afastamento precoce de um país que
demorou cerca de trinta e cinco anos até conseguir a afirmação definitiva no
panorama do futebol sul-americano e mundial. Os rumores de alguma falta de
profissionalismo por parte dos jogadores chilenos, que após os maus resultados corriam
para afogar as mágoas na movida espanhola, não ajudaram à criação de um
ambiente de conquista. Mas a partir do apito inicial do árbitro Juan Cardellino
já um pedaço de história estava completa. Don
Elías Figueroa tinha assumido definitivamente o seu papel de lenda do jogo.
Pela primeira vez desde 1930, um atleta pisou o relvado do maior evento futebolístico
do planeta sendo avô. Naquela quinta-feira, em Santiago, o orgulho apoderou-se
de mim e da minha família. Passamos a pertencer ao reino dos imortais. Ao reino
dos eternos. Graças a essa pessoa inesquecível, de seu nome Elías Ricardo
Figueroa Brander. Gran Mariscal. Muralla Roja. El Gran Zaguero. Míster Lujo.
El Coloso. Deus da Beira-Rio. Gran
Capitán. El gran Elías. Don.
Elías. Figueroa. O meu avô.
- “Se eu tivesse que situa-lo no
futebol brasileiro, diria que, embora o Brasil tenha sido três vezes campeão
mundial, nunca tivemos nas nossas selecções um zagueiro tão extraordinário como
Figueroa” - Didi, o inventor da folha seca, campeão mundial em 1958.
- “Eu sou o Figueroa da Europa” - Franz
Beckenbauer, campeão mundial em 1974 e 1990 (como treinador).
- “Se Figueroa tivesse ganho um Mundial, seria o
melhor defesa da história” - Pelé, tricampeão mundial (1958, 1962 e 1970).
- “Figueroa y Beckenbauer han sido los únicos
centrales mejores que yo en la historia” - Daniel Passarella, bicampeão mundial
(1978 e 1986).
- “Es el mejor central que vi en mi vida” - César
Luis Menotti, campeão mundial em 1978 (como treinador).
- “Elegante como um lorde de casaca, sutil como um
tigre de Bengala. Elías Figueroa foi o defesa perfeito” - Nelson Rodrigues,
jornalista e escritor brasileiro.
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