O jogo da vergonha. Uma frase
demasiado abrangente, já que o leque de candidatos a tal rótulo é vasto. Dos
mais famosos, como o Alemanha vs Áustria do Mundial de Espanha em 1982, aos mais recentes, como aquele Boca vs River dos Oitavos de Final da Copa
Libertadores de 2015. Mas não. Refiro-me a outro. A um bem mais antigo. Mais do
que um jogo de futebol. Acima de tudo, um choque antagónico e uma demonstração
de que as forças políticas nunca tiveram qualquer tipo de rodeios em usar o
jogo para vincar posições e manipular opiniões. Na Europa ou na América do Sul.
Na Rússia ou no Chile. Em Moscovo ou em Santiago.
A disputar a última vaga para o
Mundial de 1974, Chile e URSS. Eliminatória a duas mãos. Por altura da marcação
dos encontros, ambos os países eram governados pelos respectivos governos de
esquerda. Eram aliados ideológicos. Mas a história muda rapidamente. De um dia para o outro. O destino é
incontrolável e caprichoso. E quando os chilenos viajaram para Moscovo já
Pinochet era dono e senhor do governo do país sul-americano. Os jogadores,
alguns deles alinhados com o entretanto falecido no golpe de 11 de Setembro,
Salvador Allende, tinham ordens para manter o silêncio. As famílias
encontravam-se sob ameaça, e em caso de incumprimento da ordem do General, as
consequências trágicas seriam imediatas. A URSS por seu turno, condenou o
golpe, não reconheceu o novo governo e cortou relações diplomáticas com o
Chile. Circularam mesmo rumores de que os chilenos seriam detidos e que a sua
libertação só teria lugar quando o anti-comunista Augusto Pinochet ordenasse a
libertação dos seus presos políticos. Tal não aconteceu. Mas por tudo isto, foi
sob um ambiente gélido, de receio e de inquietude, que as duas equipas subiram
ao relvado do Estádio Lenine naquele dia 26 de Setembro de 1973.
"El partido de los valientes". Imagens desse jogo? São raras. Tudo o que aconteceu no encontro
da primeira mão ficou gravado na memória de quem assistiu, e que por sua vez
passou aos jornalistas no final, já estes foram impedidos de entrar no estádio. O
empate a zero, depois de noventa minutos de massacre soviético, levou a decisão
para Santiago. E aí? Aí, em pleno Estádio Nacional, teve lugar um dos encontros
menos dignificantes da história do desporto-rei. Aquele Chile vs URSS de
Novembro de 1973.
Poder
arrancar do meio campo, driblar adversários, tabelar, continuar a avançar, e no
fim, rematar para o fundo das redes vazias, depois de ultrapassado o guardião.
O sonho de qualquer criança. O sonho de todos nós em algum momento da vida. Na
meninice. Na adolescência. Nos jogos de domingo de manhã. De forma amadora ou
profissional. Ser a figura. Preencher as capas dos periódicos do dia seguinte
com a sua face. Rumar ao estrelato. Global e para sempre. Local e momentâneo.
Francisco Valdés, capitão da selecção chilena na época, tinha, com toda a
certeza, esse sonho. E cumpriu-o, ainda que de uma forma absolutamente desonrosa.
A história é simples. O governo
soviético, perante a chacina que tinha lugar em pleno Estádio Nacional pelos
comandados do General, impediu os seus atletas de marcar presença no recinto, manchado de sangue, apesar
de se encontrarem na América do Sul em digressão de preparação para a partida
decisiva. O número de presos políticos que passaram por ali era incontável. O
ar cheirava a tortura. Milhares já tinham sido mesmo assassinados em pleno estádio.
A Federação Chilena sugeriu outros palcos. Os europeus estavam dispostos a jogar, mas só em terreno neutro. O governo sul-americano, sedento de uma imagem de
normalidade (e o futebol foi sempre o cenário ideal para esse género de
demonstrações) não o permitiu e fez questão de manter o local previamente
definido. Para a FIFA, eterna apoiante dos governos pró-americanos e do futebol-negócio, nada de
anormal se passava e o jogo realizar-se-ia. Com russos ou sem russos.
E
assim foi. Quando a 21 de Novembro de 1973 os chilenos subiram ao relvado,
juntamente com o árbitro da partida e cerca de 18 mil espectadores nas
bancadas, fizeram-no sem adversário. A vergonha iria ser mesmo uma realidade.
Sem pudores. A voz da razão, vulgo Pinochet, assim o ordenava. Ali, no mesmo local onde Garrincha ganhou um lugar no Olimpo do jogo onze anos antes. O árbitro
apitou. Quatro chilenos, entre os quais o capitão de equipa Francisco Valdés,
trocaram a bola entre si. Sem ninguém. Sem regras. Até ao golo. Golo esse que
aconteceu mesmo. Um golo-fantasma. Um tento que nunca deveria ter acontecido.
Um momento de pobreza espiritual. Uma forma demasiado triste de vincar uma
posição política usando o jogo que todos adoramos. Um momento made in Guerra Fria, em plena costa
Oeste da América do Sul.
Carlos Caszely, jogador chileno, goleador do Colo-Colo, definiu o momento
desta forma, alguns anos mais tarde: “fue
el remedo de fútbol más grande que vi en mi vida, la escena más absurda de un
juego. Ni siquiera en el barrio viví yo un solo día tan estúpido, tan vacío,
tan mentiroso”. A citação demonstra a angústia dos sul-americanos. Mas nada
podiam fazer. Foram obrigados. Posteriormente, a FIFA anulou o resultado e deu a vitória aos chilenos por 2-0 devido à falta
de comparência dos soviéticos. Após o golo de Valdés o árbitro deu por terminada a partida, já que não existia ninguém para dar o pontapé de saída pós-golo. Subiu então ao relvado a equipa
do Santos (sem Pelé), convidada para um jogo amigável, e que goleou um conjunto da casa animicamente destruído depois da farsa na qual foi compelido a participar com
cinco golos sem resposta. Tudo em nome da imagem de normalidade. Tudo em nome da glorificação de um ditador. Tudo em nome
do reforço das posições estratégicas no tabuleiro geopolítico mundial. Mas no fundo, foi uma vitória sem glória. Uma vitória sem direito a qualquer tipo de festejo. Uma vitória que foi contra toda a essência do futebol. "El teatro de lo absurdo", nas palavras de Caszely. O jogo da vergonha.
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