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Higuaín, memória e emoção

O que é que nos marca mais: uma memória boa ou uma má? Basta uma má para apagar muitas boas? O que fazer às memórias boas que temos de u...

O que é que nos marca mais: uma memória boa ou uma má? Basta uma má para apagar muitas boas? O que fazer às memórias boas que temos de uma pessoa que acabou por nos magoar? São estas as perguntas que passam pela cabeça dos adeptos do Nápoles, no meio do chorrilho de coisas más que desejam a Gonzalo Higuaín, enquanto tentam processar o que aconteceu. Daqui a uns anos, como vão os adeptos do Nápoles contar aos netos a passagem de Pipita pelo Partenopei? Vão contar as partes boas e passar por cima do final azedo? Vão arranjar uma desculpa qualquer, como fazem nas séries quando matam uma personagem de um actor que vai entrar para a reabilitação? Ou vão mesmo ignorar que tudo aconteceu, atirando para o esquecimento o mau mas também o bom?

A memória é difícil de definir. Jonh Locke definiu-a como sendo o poder da mente de reviver percepções do passado, com a percepção adicional de que já as vivemos antes. Podemos dizer que se trata de um conjunto de capacidades cognitivas que nos permite reter a informação e, posteriormente, reconstruir as experiências que percepcionamos no passado. A memória é a interacção entre o conhecimento, a percepção e a imaginação. O conhecimento é a nossa capacidade de reter a informação. A percepção, a forma como interpretámos a informação no momento. A imaginação, a forma como re-montamos a informação retida e percepcionada, à posteriori, de maneira a sermos capazes de reviver as experiências do passado.


A informação

No caso em questão, a informação a reter é simples e fácil de compreender. A história começa longe de Nápoles, em Santiago do Chile, e com outra camisola. A Argentina de Messi disputava a final da Copa América 2015 em terreno inimigo. Era a oportunidade para conquistar o primeiro grande troféu desta geração. Nos últimos segundos do prolongamento, depois do tempo regulamentar ter terminado 0-0, Messi lançou um contra-ataque pela faixa central. Abriu para Lavezzi na esquerda que viu Higuaín a escapar nas costas da defesa. O passe saiu um pouco puxado de mais, mas ainda assim ao alcance do ponta-de-lança argentino. Higuaín não foi capaz de desviar a bola o suficiente e ela acabou por ir às malhas laterais. Otamendi, a ver tudo de longe, levou as mãos à cara. Sabia que a Argentina tinha perdido a grande oportunidade para vencer. Nos penaltis, Higuaín voltou a falhar, atirando bem por cima da trave o seu remate da marca dos 11 metros. Higuaín foi feito bode expiatório de mais um falhanço da "Geração Messi". Esta não foi a primeira vez que ele falhou num momento decisivo. Falhou na final do Campeonato do Mundo frente à Alemanha. Falhou também um penalti frente à Lazio na última jornada com o resultado empatado a dois, depois de ter marcado os 2 golos do Partenopei. O Nápoles acabou por perder o jogo por 4-2 e o lugar de acesso à Liga dos Campeões para os Biancocelesti. Falhou no Real Madrid, na meia-final da Copa del Rey de 2011/12 contra o Barcelona. Falhou nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões frente ao Lyon. A Copa América foi apenas mais um episódio no meio de muitos que ajudaram a construir a imagem de "Higuaín, o pé frio".

Só os adeptos do Nápoles, que o viam semana após semana, sabiam que ele era um dos melhores pontas-de-lança do Mundo nos outros momentos. Na ressaca da Copa América, Higuaín chegou a Nápoles para encontrar um clube em profunda mudança. O novo treinador, Maurizio Sarri, mudou tudo: sistema, estratégia e mentalidade. Aos poucos os adeptos foram se apercebendo daquilo que Sarri estava a construir, uma equipa finalmente capaz de competir pelo Scudetto. A jogar o futebol mais atraente da península, o Nápoles chegou ao fim da primeira volta em primeiro lugar. Já se faziam comparações com a equipa de Maradona. Na crista desta onda vinha Higuain, desde cedo líder indiscutível da tabela dos melhores marcadores. Tudo se decidiu num confronto directo com a Juventus, que os Bianconeri venceram pela mais pequena das margens, quer no resultado, quer em termos exibicionais. Higuain era um dos mais decepcionados. Os adeptos viam nele a sua própria dor. O pico da frustração veio na derrota frente à Udinese, o adeus definitivo ao título. Higuain teve um colapso mental e acabou suspenso por quatro jogos. A suspensão colocava em risco o recorde que perseguia, o de melhor marcador de sempre numa época da Serie A. Chegou lá e da maneira mais épica que se possa imaginar.

No último jogo da temporada, Higuain precisava de um hat-trick frente ao Frosinone. Marcou dois golos ditos normais e fechou o hat-trick com um pontapé acrobático, o seu melhor tento em toda a temporada. Dizer que Higuain atingiu um estatuto lendário na Serie A não é um exagero. Leonardo Blanchard, defesa do Frosinone que foi humilhado pelo Nápoles durante 90 minutos, esperou mais de meia-hora por Higuain para trocar de camisola, sem tomar banho com medo de perder a oportunidade. O Argentino quebrou um recorde com 66 anos, que tantas lendas do futebol italiano não conseguiram bater. Acabava assim em êxtase uma época que ameaçava terminar em desilusão. Certo que o Scudetto tinha fugido, mas o Nápoles tinha o melhor marcador da Serie A de todos os tempos e, acima de tudo, muita esperança no futuro. No verão seguinte, a Juventus pagou a sua clausula de rescisão, fixada em 94 milhões de euros, e o argentino mudou-se para Turim. Esta é a informação.


A emoção

Tanto a percepção como a imaginação necessárias à materialização mental de uma memória são fortemente moldadas pelas nossas emoções, e foram essas que levaram à exacerbação da situação. A ciência diz-nos que recordamos mais facilmente eventos emocionais do que não-emocionais, quer eles sejam positivos ou negativos. Mais importante ainda, as memórias associadas a uma emoção são recordadas com muito maior vivacidade e precisão. Quando Higuain marcou aquele golo de pontapé de bicicleta deixou para sempre a sua marca na memória dos napolitanos. Isso só tornou a separação mais difícil e por isso a reacção foi tão violenta, com as camisolas de Higuain a passarem a enfeitar os caixotes do lixo da cidade. Aurelio de Laurentiis deixou-se levar também pelas emoções e atacou Higuain, com palavras cruas, referências a traição e à resistência da cidade às invasões Nazis. Não há mais emocional que isto. No entanto, as emoções toldaram a percepção dos napolitanos. "Vendido" é um adjectivo muito forte para um jogador que vai apenas para o seu terceiro clube na Europa e que rejeitou uma proposta de igual valor do Nápoles para ficar. "Traição" é um adjectivo muito forte para alguém que só estava há três anos no clube. Mas aquele golo, aquele momento, fez de Higuain um membro vitalício do Nápoles na mente dos adeptos. O próprio Higuain se deixou levar pelas emoções. Culpou De Laurentiis depois de nunca lhe ter apontado nenhum defeito em três anos. Não foi capaz de admitir a verdade: Higuain queria a Juventus.  Várias vezes disse que sonhava vestir a camisola de Del Pieri. Mas sabia que o que queria estava moralmente errado e tinha ele próprio emoções fortes pelos adeptos do Nápoles. Precisava de um motivo mais forte do que apenas a sua vontade e, sobretudo, um mais fácil de admitir.

A resposta à primeira pergunta que fizemos no início é simples. Tanto boas como más, as memórias emocionais ficam gravadas na nossa memória por mais tempo e com mais vivacidade, captando todos os pormenores, com um nível de detalhe quase fotográfico, aquilo que os psicólogos chamam flashbulb memory. Portanto, quando se lembrarem de Higuain, os adeptos do Nápoles vão-se lembrar do melhor e o pior. A raiva certamente os fará negar que se lembram das coisas boas, mas só se estarão a enganar a si próprios. Higuain vai ser assobiado sempre que entrar no San Paolo, o estádio que nos últimos três anos gritou o seu nome até à exaustão. A sua simples presença em campo levará à loucura o mais serenos dos napolitanos. Mas o momento contra o Frosinone fica, a memória fica. Resta aos napolitanos seguirem em frente, percebendo que a sua equipa é muito mais do que uma individualidade. É uma das últimas defensoras de um ideal. Isso vale por mil Higuains.

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